quarta-feira, 26 de maio de 2010

1º ENCONTRO

AS CONCEPÇÕES DAS CRIANÇAS A RESPEITO DO SISTEMA DE ESCRITA
Os indicadores mais claros das explorações que as crianças realizam para compreender a natureza da escrita são suas produções espontâneas, entendendo como tal as que não são o resultado de uma cópia (imediata ou posterior).3 Quando uma criança escreve tal como acredita que poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras,4 está nos oferecendo um valiosíssimo documento que necessita ser interpretado para poder ser avaliado. Essas escritas infantis têm sido consideradas, displicentemente, como garatujas, "puro jogo", o resultado de fazer "como se soubesse escrever. Aprender a lê­Ias -- isto é, a interpretá-Ias - é um longo aprendizado que requer uma atitude teórica definida. Se pensarmos que a criança aprende só quando é submetida a um ensino sistemático, e que a sua ignorância está garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se pensarmos que as crianças são seres que ignoram que devem pedir permissão para começar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora não tenha sido dada a elas a autorização institucional para tanto. Saber algo a respeito de certo objeto não quer dizer, necessariamente, saber algo socialmente aceito como "conhecimento". "Saber" quer dizer ter construído alguma concepção que explica certo conjunto de fenômenos ou de objetos da realidade. Que esse "saber" coincida com o "saber" socialmente válido é um outro problema (embora seja esse, precisamente, o problema do "saber¨ escolarmente reconhecido). Uma criança pode conhecer o nome (ou o valor sonoro convencional) das letras, e não compreender exaustivamente o sistema de escrita. Inversamente, outras crianças realizam avanços substanciais no que diz respeito à compreensão do sistema, sem ter recebido informação sobre a denominação de letras particulares. Aqui mencionaremos brevemente alguns aspectos fundamentais desta evolução psicogenética, que tem sido apresentada e discutida com maior detalhe em outras publicações.5
As primeiras escritas infantis aparecem, do ponto de vista gráfico, como linhas onduladas ou quebradas (ziguezague), contínuas ou fragmentadas, ou então como uma série de elementos discretos repetidos (séries de linhas verticais, ou de bolinhas). A aparência gráfica não é garantia de escrita, a menos que se conheçam as condições de produção.
O modo tradicional de se considerar a escrita infantil consiste em se prestar atenção apenas nos aspectos gráficos dessas produções, ignorando os aspectos construtivos. Os aspectos gráficos têm a ver com a qualidade do traço, a distribuição espacial das formas, a orientação predominante (da esquerda para a direita, de cima para baixo), a orientação dos caracteres individuais (inversões, rotações, etc.). Os aspec­tos construtivos têm a ver com o que se quis representar e os meios utilizados para criar diferenciações entre as representações.
Do ponto de vista construtivo, a escrita infantil segue uma linha de evolução surpreendentemente regular, através de diversos meios culturais, de diversas situações educativas e de diversas línguas. Aí, podem ser distinguidos três grandes períodos no interior dos quais cabem múltiplas subdivisões:


• distinção entre o modo de representação icônico e o não-icônico;

• a construção de formas de diferenciação (controle progressivo das variações sobre os eixos qualitativo e quantitativo);


• a fonetização da escrita (que se inicia com um período silábico e culmina no período alfabético).
No primeiro período se conseguem as duas distinções básicas que sustentarão as construções subseqüentes: a diferenciação entre as marcas gráficas figurativas e as não-figurativas, por um lado, e a constituição da escrita como objeto substituto, por outro.6 A distinção entre "desenhar" e "escrever" é de fundamental importância (quaisquer que sejam os vocábulos com que se designam especificamente essas ações). Ao desenhar se está no domínio do icônico; as formas dos grafismos importam porque reproduzem a forma dos objetos. Ao escrever se está fora do icônico: as formas dos grafismos não reproduzem a forma dos objetos, nem sua ordenação espacial reproduz o contorno dos mesmos. Por isso, tanto a arbitrariedade das formas utilizadas como a ordenação linear das mesmas são as primeiras características manifestas da escrita pré-escolar. Arbitrariedade não significa necessariamente convencionalidade. No entanto, também as formas convencionais costumam fazer a sua aparição com muita precocidade. As crianças não empregam seus esforços intelectuais para inventar letras novas: recebem a forma das letras da sociedade e as adotam tal e qual.
Por outro lado as crianças dedicam um grande esforço intelectual na construção de formas de diferenciação entre as escritas e é isso que caracteriza o período seguinte. Esses critérios de diferenciação são, inicialmente, intrafigurais e consistem no estabelecimento das propriedades que um texto escrito deve possuir para poder ser interpretável (ou seja, para que seja possível atribuir-lhe uma significação). Esses critérios intrafigurais se expressam, sobre o eixo quantitativo, como a quantidade mínima de letras - geralmente três, que uma escrita deve ter para que "diga algo" e, sobre o eixo qualitativo, como a variação Interna necessária para que uma série de grafias possa ser interpretada (se o escrito tem "o tempo todo a mesma letra", não se pode ler, ou seja, não é interpretável) .

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