quarta-feira, 26 de maio de 2010

A ESCRITA COMO REPRESENTAÇÃO - EMÍLIA FERREIRO

A ESCRITA COMO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO
Emília Ferreiro2
A escrita pode ser concebida de duas formas muito diferentes e conforme o modo de considerá-la as conseqüências pedagógicas mudam drasticamente. A escrita pode ser considerada como uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras. Tratemos de precisar em que consistem as diferenças.
A construção de qualquer sistema de representação envolve um processo de diferenciação dos elementos e relações reconhecidas no objeto a ser apresentado e uma seleção daqueles elementos e relações que serão retidos na representação. Um representação X não é igual à realidade R que representa (se assim for, não seria uma representação mas uma outra instância de R). portanto, se um sistema X é uma representação adequada de certa realidade R, reúne duas condições aparentemente contraditórias:
a) X possui algumas das propriedades e relações próprias de R;
b) X exclui algumas das propriedades e relações próprias a R.
O vínculo entre X e R pode ser de tipo analógico ou totalmente arbitrário. Por exemplo, se os elementos de R são formas, distâncias e cores, X pode conservar essas propriedades e representar formas por formas, distâncias por distâncias e cores por cores. É o que acontece no caso dos mapas modernos: a costa não é uma linha, mas a linha do mapa conserva as relações de proximidade entre dois pontos quaisquer, situados nessa costa; as diferenças de altura do relevo não se exprimem necessariamente por diferenças de coloração em R, mas podem se exprimir por diferenças de cores em X, etc. Embora um mapa seja basicamente um sistema de representação analógico, contém também elementos arbitrários; as fronteiras políticas podem ser indicadas por uma série de pontos, por uma linha contínua ou por qualquer outro recurso; as cidades não são formas circulares nem quadradas e, no entanto, são estas duas formas geométricas as que habitualmente representam — na escala do mapa de um país — as cidades3; etc.
A construção de um sistema de representação X adequado a R é um problema completamente diferente da construção de sistemas alternativos de representação (X1, X2, X3 …) construídos a partir de um X original. Reservamos a expressão codificar para a construção desses sistemas
2 Fragmento de: Ferreiro, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez Editora, 1990 (pp. 10-16).
3 As diferenças em números de habitantes das populações, ou na importância política das mesmas, pode se exprimir por diferenças de formas tais como quadrados versus círculos, ou senão por variações de tamanho dentro da mesma forma. Neste caso se restabelece o analógico no interior do arbitrário.
alternativos. A transcrição das letras do alfabeto em código telegráfico (código Morse), a transcrição dos dígitos em código binário computacional, a produção de códigos secretos para uso militar, etc., são todos exemplos de construção de códigos de transcrição alternativa baseados em uma representação já constituída (o sistema alfabético para a (…) [língua] ou o sistema ideográfico para os números).
A diferença essencial é a seguinte: no caso da codificação, tanto os elementos como as relações já estão predeterminados; o novo código não faz senão encontrar uma representação diferente para os mesmos elementos e as mesmas relações. No caso da criação de uma representação, nem os elementos nem as relações estão predeterminados. Por exemplo, na transcrição de escrita em código Morse todas as configurações gráficas que caracterizam as letras se convertem em seqüências de pontos e traços, mas a cada letra do primeiro sistema corresponde uma configuração diferente de pontos e traços, em correspondência biunívoca. Não aparecem ―letras novas‖ nem se omitem distinções anteriores. Ao contrário, a construção de uma primeira forma de representação adequada costuma ser um longo processo histórico, até se obter uma forma final de uso coletivo.
A invenção da escrita foi um processo histórico de construção de um sistema de representação, não um processo de codificação. Uma vez construído, poder-se-ia pensar que o sistema de representação é aprendido pelos novos usuários como um sistema de codificação. Entretanto, não é assim. No caso dos dois sistemas envolvidos no início da escolarização (o sistema de representação dos números e o sistema de representação da linguagem) as dificuldades que as crianças enfrentam são dificuldades conceituais semelhantes às da construção do sistema e por isso pode-se dizer, em ambos os casos, que a criança reinventa esses sistemas. Bem entendido: não se trata de que as crianças reinventem as letras nem os números, mas que, para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processo de construção e suas regras de produção, o que coloca o problema epistemológico fundamental: qual é a natureza da relação entre o real e sua representação?
No caso particular da linguagem escrita, a natureza complexa do signo lingüístico torna difícil a escolha dos parâmetros privilegiados na representação. A partir dos trabalhos de Ferdinand Saussure estamos habituados a conceber o signo lingüístico como a união indissolúvel de um significante com um significado, mas não avaliamos suficientemente o que isto pressupõe para a construção da escrita como sistema de representação. É o caráter bifásico do signo lingüístico, a natureza complexa que ele tem e a relação de referência o que está em jogo. Porque, o que a escrita realmente representa? Por acaso representa diferenças nos significados? Ou diferenças nos significados com relação à propriedade dos referentes? Representa por acaso diferenças entre significantes? Ou diferenças entre os significantes com relação aos significados?
As escritas do tipo alfabético (tanto quanto as escritas silábicas) poderiam ser caracterizadas como sistemas de representação cujo intuito original — e primordial — é representar as diferenças entre os significantes. Ao contrário, as escritas do tipo ideográfico poderiam ser caracterizadas como sistemas de representação cuja intenção primeira — ou primordial — é representar diferenças nos significados. No entanto, também se pode afirmar que nenhum sistema de escrita conseguiu representar de maneira equilibrada a natureza bifásica do signo lingüístico. Apesar de alguns deles (como o sistema alfabético) privilegiam a representação de diferenças entre os significantes e que outros (como os ideográficos) privilegiam a representação de diferenças nos significados, nenhum deles é ―puro‖: os sistemas alfabéticos incluem — através da utilização de recursos ortográficos — componentes ideográficos (Blanche-Benveniste e Chervel, 1974), tanto quanto os sistemas ideográficos (ou logográficos) incluem componentes fonéticos (Cohen, 1958 e Gelb, 1976).
A distinção que estabelecemos entre sistema de codificação e sistema de representação não é apenas terminológica. Suas conseqüências para a ação alfabetizadora marcam uma nítida linha divisória. Ao concebermos a escrita como um código de transcrição que converte as unidades sonoras em gráficas, coloca-se em primeiro plano a discriminação perceptiva nas modalidades envolvidas (visual e auditiva). Os programas de preparação para a leitura e a escrita que derivam desta concepção centram-se, assim, na exercitação da discriminação, sem se questionarem jamais sobre a natureza das unidades utilizadas. A linguagem, como tal, é colocada de certa forma ―entre parênteses‖, ou melhor, reduzida a uma série de sons (contrastes sonoros em nível do significante). O problema é que, ao dissociar o significante sonoro do significado, destruímos o signo lingüístico. O pressuposto que existe por detrás destas práticas é quase transparente: se não há dificuldade par discriminar entre duas formas visuais próximas, nem entre duas formas auditivas próximas, nem também para desenhá-las, não deveriam existir dificuldades para aprender a ler, já que se trata de uma simples transcrição do sonoro para um código visual.
Mas se se concebe a aprendizagem da língua escrita como a compreensão do modo de construção de um sistema de representação, o problema se coloca em termos completamente diferentes. Embora se saiba falar adequadamente, e se façam todas as discriminações perceptivas aparentemente necessárias, isso não resolve o problema central: compreender a natureza desse sistema de representação. Isto significa, por exemplo, compreender por que alguns elementos essenciais da língua oral (a entonação, entre outros) não são retidos na representação; por que todas as palavras são tratadas como equivalentes na representação, apesar de pertencerem a ―classes‖ diferentes; por que se ignoram as semelhanças no significado e se privilegiam as semelhanças sonoras; por que se introduzem diferenças na representação por conta das semelhanças conceituais, etc.
A conseqüência última dessa dicotomia se exprime em termos ainda mais dramáticos: se a escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é concebida como a aquisição de uma técnica; se a escrita é concebida como um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apropriação de um novo objeto de conhecimento, ou seja, uma aprendizagem conceitual.

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